quarta-feira, novembro 20, 2002
A exposição vai até domingo... portanto, recifenses, se vocês não foram ainda, corram. Vale a pena esperar na fila.
O Brasil, em primeira mão: o conjunto completo das obras de Albert Eckhout chega ao país depois de 350 anos
(Veja online)
A mameluca, a tupinambá, a tapuia e a negra retratadas por Eckhout: descrições minuciosas de tipos étnicos ou alegorias? Essa é uma questão que intriga os estudiosos do artista holandês
Quando aportou no Recife, em 1637, o conde alemão Maurício de Nassau tinha o objetivo de consolidar o domínio militar que seus patronos, os holandeses, exerciam havia sete anos sobre o Nordeste brasileiro. Mas sua comitiva também trazia artistas e naturalistas, aos quais fora dada a tarefa de estudar e registrar tudo o que vissem. Dois nomes desse grupo se tornaram célebres: o de Frans Post (1612-1680) e o de Albert Eckhout (1610-1665). Cabia ao primeiro pintar paisagens e documentar os feitos de Nassau. Ao segundo, retratar os tipos étnicos que encontrasse, além da fauna e da flora que fascinavam os europeus. Pioneiras, as telas de ambos fazem parte da cartilha básica de imagens sobre o Brasil. Mas, enquanto Post é um artista de reputação consolidada, Eckhout não pára de despertar controvérsia. Seriam seus quadros puramente descritivos, ou teriam um conteúdo alegórico? Em que medida seus retratos são confiáveis do ponto de vista etnológico? Longe de ser um assunto encerrado, ainda está em aberto o entendimento das obras desse misterioso holandês, sobre cuja vida pouca coisa se conhece. Daí o valor da mostra Albert Eckhout Volta ao Brasil 1644-2002, que começa nesta terça-feira no Instituto Ricardo Brennand, do Recife. Trata-se de um evento inédito: pela primeira vez, todas as 24 pinturas brasileiras de Eckhout ainda existentes (duas se perderam em incêndios) foram liberadas pela instituição que as abriga, o Museu Nacional da Dinamarca. Quase uma década de negociações foi necessária para que isso acontecesse – além de um seguro que, estima-se, gira em torno dos 250 milhões de dólares.
As doze naturezas-mortas com frutas e legumes feitas por Eckhout não apresentam grandes problemas ao público. Elas se encaixam na tradição de pintura holandesa de seu tempo. Essa tradição era descritiva, como diz a historiadora americana Svetlana Alpers, uma das maiores autoridades mundiais em arte holandesa, que visita o Brasil nesta semana convidada pelos organizadores da exposição de Eckhout. Em seu livro A Arte de Descrever (Edusp), Svetlana demonstra que o que mais importava aos artistas daquele país, no século XVII, era oferecer ao espectador um conhecimento concreto do mundo, por meio de desenhos e pinturas. Nas naturezas-mortas eles usavam artifícios para mostrar um mesmo objeto de maneiras variadas – por fora, com parte de seu interior à mostra, ou ainda refletidos em metais e espelhos. Eram quadros planejados "como uma festa para o olhar atento", diz a autora, numa frase que se aplica à perfeição às goiabas, abacaxis, castanhas e cocos pintados por Eckhout, inteiros ou fatiados, com sua casca e sua polpa colorida expostas.
Ao contrário do que acontece com as naturezas-mortas, os retratos de Eckhout são um quebra-cabeça. O conjunto mais importante é em tamanho natural. As oito telas podem ser divididas em pares, cada um relativo a um casal. Há o casal de índios tapuias, o de índios tupinambás, o de negros e o de mamelucos. Há quem diga que eles são alegorias dos quatro continentes em que os europeus dividiam o mundo na época (América, Ásia, África e Europa), ou então alegorias dos estágios da civilização. Svetlana Alpers acredita que qualquer tentativa de enxergar significados ocultos nesses quadros é mal encaminhada. "O que Eckhout fez foi olhar para aquelas figuras com atenção e minúcia. Suas telas deveriam servir como testemunho daquilo que os europeus viram do outro lado do mundo. É isso que as torna especiais", disse a pesquisadora a VEJA. O fato de os personagens aparecerem de maneira posada não incomoda Svetlana – seria uma concessão às convenções artísticas, mas não uma falsificação. Ao observar um quadro como Negra, porém, alguns etnólogos não têm tanta certeza de que ele mostra uma escrava que se pudesse encontrar no Nordeste. Tanto a vegetação que a cerca quanto a indumentária e os adereços da mulher parecem indicar que ela ainda habita a África, e não o Brasil. A discussão não tem fim.
É difícil decifrar esses enigmas porque quase nenhuma informação sobreviveu a respeito de Eckhout. Ele ficou no Brasil por sete anos, de 1637 a 1644. O que fez antes é nebuloso, assim como o destino que teve após voltar à Europa. Quando os holandeses foram expulsos do Nordeste, Maurício de Nassau levou as telas consigo e as deu de presente ao seu primo, Frederico III, rei da Dinamarca. Isso explica por que elas pertencem ao museu nacional de Copenhague. Dom Pedro II tentou por duas vezes trazer os quadros para o Brasil, mas o máximo que conseguiu foram cópias reduzidas de seis deles. Partes do acervo chegaram até o país em quatro oportunidades: em 1968, em 1991, em 1998 e no ano 2000, durante a Mostra do Redescobrimento. Nove quadros nunca foram vistos por aqui.
Foi a obstinação de um publicitário, o dinamarquês Jens Olensen, presidente da agência McCann-Erickson no Brasil, que finalmente tornou possível a vinda do conjunto completo de obras. Apaixonado por Eckhout, ele negociou por oito anos com as autoridades dinamarquesas. A construção do Instituto Ricardo Brennand, no Recife, acabou sendo um trunfo importante em sua cruzada (veja quadro abaixo). Réplica de um castelo europeu, o prédio dispõe de uma pinacoteca impecável, dotada de equipamentos para um controle rígido de condições climáticas (as telas de Eckhout podem ser danificadas se expostas a níveis de temperatura e umidade inadequados). "Os técnicos dinamarqueses ficaram impressionados com as instalações e deram sinal verde depois de visitá-las", diz Olensen. Uma verdadeira operação de guerra foi deflagrada para trazer os quadros de Copenhague até o Recife. Foram utilizados três aviões especiais de carga para transportar as 24 obras, em caixas climatizadas de 12 metros quadrados. Cada um partiu em sigilo absoluto, devido ao valor altíssimo das obras. Elas ficarão sete meses no Brasil. Em dezembro seguem para Brasília e em janeiro para São Paulo. A organização do evento demandou 2,5 milhões de dólares, e espera-se que 1,2 milhão de pessoas, nas três cidades, prestigiem esse "retorno de Eckhout".
O senhor do castelo
O milionário Ricardo Brennand, que deu seu nome ao recém-inaugurado instituto onde estão expostas as obras de Eckhout no Recife, pertence a uma família influente na economia de Pernambuco – e nas artes locais também. O clã, de origem inglesa, estabeleceu-se no Estado em 1820 e montou um império que inclui usinas de açúcar e indústrias de aço, cerâmica, cimento, porcelana e vidro. O empresário é primo em primeiro grau do ceramista Francisco Brennand, um dos mais incensados artistas pernambucanos. De sua parte, Ricardo, de 75 anos, encontrou sua vocação no mecenato e na organização de coleções. Ele tem investido altas quantias em arte e revela um gosto bem diversificado. Possui a maior coleção particular do mundo de óleos do holandês Frans Post, colega de expedição de Eckhout. Também tem um vasto acervo de armas antigas e livros raros. Ao criar seu novo instituto, ele realizou um sonho: construiu uma réplica de um castelo medieval para abrigar a entidade. "Não tenho talento para criar, mas sou um bom copista", brinca. Embora o empresário seja reservado ao falar em cifras, especula-se que só nas instalações da pinacoteca do complexo foram consumidos 20 milhões de dólares. Parte do dinheiro investido no projeto, informa o próprio Brennand, veio da venda de três fábricas de cimento da família.
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Viviane at 5:53:00 PM
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