terça-feira, dezembro 31, 2002
Texto do meu amigo Kleber, do Jornal do Commercio de ontem:
Um homem que amava e vivia para o cinema
Morreu, na última sexta-feira, aos 77 anos, João Alexandre Moura, mais antigo projecionista de filmes no Recife, que atuou em casas como Art Palácio, Ribeira e Cine Arraial
KLEBER MENDONÇA FILHO
João Alexandre Moura, ‘Seu’ Alexandre, faleceu na última sexta-feira, aos 77 anos. Ele não foi cineasta, mas o recifense freqüentador de cinema nos últimos 50 anos provavelmente viu os filmes dele. Projecionista, desde os anos 40, em salas como Boa Vista (hoje uma papelaria na praça Chora Menino), Torre (prédio residencial), Parque, Art-Palácio (um bingo na Rua da Palma), Ribeira (fechado, no Centro de Convenções) e, por último, o Arraial, ‘Seu’ Alexandre deve ter projetado bem mais que um bilhão de quilômetros de fita em celulóide. Se considerarmos que o cinema freqüentemente fica na gente para sempre, o trabalho de ‘Seu’ Alexandre deve mesmo fazer parte das nossas vidas.
Ele sempre disse que o trabalho do projecionista era ingrato. Falava que a competência de um operador passa despercebida, mas qualquer erro é prontamente assinalado por gritos. Lembrava também o fato de que, ao ficar trancado numa cabine isolada acusticamente do auditório, segregado do público, o operador de projeção é fadado ao completo ostracismo.
No caso de ‘Seu Alexandre’, ostracismo não era palavra facilmente aplicável. Ele tornou-se personagem cinematográfico do Recife ao fascinar cinéfilos com o tipo de nostalgia e romantismo que cinéfilos geralmente têm.
Eu mesmo fiz (em parceria com Elissama Cantalice) dois documentários sobre ele: Homem de Projeção e Casa de Imagem (ambos de 1992). Nesse segundo, onde é registrado o fechamento do Art-Palácio, ‘Seu’ Alexandre diz estar fechando o cinema (em julho de 92) “com uma chave de lágrimas”. A frase, jogada naturalmente numa conversa, pode dar uma idéia aos que nunca tiveram a chance de conhecê-lo pessoalmente o tipo de doçura do seu caráter.
No Art-Palácio, uma das mais luxuosas do Recife nos anos 40, ‘Seu’ Alexandre passou a maior parte da carreira. Começou a trabalhar lá nos anos 40, dividindo o serviço de projeção com o de motorista da fábrica Pilar onde, mais tarde, aposentou-se. Dirigia durante o dia, projetava filmes à noite com carteira assinada pela Art-Films.
Suas histórias relacionadas aos hábitos do recifense nos cinemas ao longo dos anos, os filmes e o impacto que tinham no público são dignas de um livro. Tudo isso com um olhar que mescla amor pelo cinema e a praticidade muitas vezes objetiva de alguém que há muito desvendou a magia de uma sala de projeção.
Falava do tempo em que o ar-condicionado do Art-Palácio consistia de barras grandes de gelo sopradas por ventiladores no forro do auditório. Falou das instruções enviadas pela Paramount sobre como abrir perfeitamente a cortina da sala no início de Os Dez Mandamentos (1956), de Cecil B de Mille. Lembrava também a transferência para o Trianon, por não agüentar mais ouvir “aquela musiquinha de O Poderoso Chefão” (anos 70).
Falava de erros no serviço com o mesmo humor que aplicava ao seu sucesso como personagem, ou o mesmo carinho que falava do neto Tiago. Uma vez, projetando um bangue-bangue italiano, esqueceu de incluir um rolo do filme. A sessão acabou 20 minutos mais cedo, o público nada percebeu e o gerente ouviu impressionado a seguinte desculpa criativa de ‘Seu’ Alexandre: “houve uma alta de corrente e a máquina correu feito uma peste!”.
Com o fechamento do Art-Palácio, passou um tempo longe dos filmes. Voltou em grande estilo para assumir, em 1993, a cabine do Ribeira, a melhor programação do Recife por boa parte dos anos 90. Nesse período, ‘Seu’ Alexandre gozou de enorme popularidade com os cinéfilos. Retribuía as dezenas de gentilezas com um sorriso que vinha principalmente dos olhos, ou com ‘trelas’ adoráveis, como incluir em sessões do Ribeira um velho rolinho (anos 60) de Feliz Natal e Próspero Ano Novo, que ele herdou da cabine do Art-Palácio, e feita originalmente para rodar naquele cinema!
Projetou Lawrence da Arábia, Ben Hur e Pixote, Tubarão, A Doce Vida, Gandhi e Um Corpo Que Cai. Blade Runner, Emmanuelle, The Doors, Casablanca e Os Cafajestes. Em tempos de mudanças no sistema de exibição (um operador para cinco salas de multiplex, projeção digital...), ‘Seu’ Alexandre leva com ele toda uma época e um jeito de ver e mostrar filme. Mas, algo disso tudo há de ficar com a gente. Cinema geralmente fica.
Eu tive o privilégio de conhecer Seu Alexandre e de conversar sobre cinema com ele. E minha lembrança mais viva é a do dia da estréia da Versão do Diretor de Blade Runner, no Cine Ribeira. Fui ver Seu Alexandre depois de terminado o filme e perguntei a ele se por acaso ele teria um ou dois fotogramas sobrando no chão. Pois ele tinha - cerca de dez centímetros de rolo da cena em que Roy Batty morre - e me deu de presente: "se você mandar revelar como fotografia normal, vai ficar lindo". Eu nunca fiz isso. Os fotogramas, quase dez anos depois, estão bem guardados aqui na minha gaveta. E todas as horas mágicas que passei dentro da sala escura enquanto Seu Alexandre trabalhava estão bem guardados também. Como disse o Kleber, cinema sempre fica. E ano que vem, quando a Academia fizer a sua homenagem aos que se foram em 2002, vai ser difícil não pensar no Homem de Projeção.
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Viviane at 2:35:00 PM
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