segunda-feira, julho 11, 2005
London will go on
O atentado aconteceu na véspera da minha viagem e eu estava chocada demais pra abrir o blog. De qualquer forma, este texto expressa o que eu senti na quinta-feira muito melhor do que eu jamais conseguiria.
Raquel e Nàdia, isso é pra vocês duas também -- que entendem que amor por uma cidade acontece independentemente de onde se nasce.
London calling
Não tenho disciplina. Tento, tento. Durmo tarde, acordo tarde. Tem as suas vantagens: posso furar a noite com os meus prazeres e os meus dramas, sem a patética angústia da manhã que chega. Tem as suas desvantagens, também: quando o telefone toca demasiado cedo, é porque aconteceu algo demasiado grave. Foi o caso. Uma amiga de longa data liga e informa: Londres foi atacada. Quatro explosões, mortos indeterminados. Muitos feridos. É uma forma de acordar.
Sim, sim, toda a gente estava à espera do inesperado. Aqui há uns tempos, nas folhas da Folha, escrevi resenha breve sobre Saturday (sábado), o último Ian McEwan disponível em inglês, romance prodigiosamente escrito sobre a vida de médico londrino. Claro que a personagem do romance --Henry Perowne, eis o nome-- era apenas pretexto para uma reflexão maior: no livro de McEwan, a personagem central é Londres. Não, não apenas Londres: mas o clima de ameaça invisível que paira sobre a cidade e que, como na vida de Perowne, acabará por emergir quando ninguém espera.
E ninguém esperou mesmo. Ligo a televisão e, deitado na cama, vou acompanhando as informações disponíveis. Políticos de todo o mundo dizem o que todo o mundo diz. Piada grotesca: alguns ditadores também. Pornográfico. E depois, os locais das explosões propriamente ditos. Liverpool Street. Russell Square. Edgward Road. Tavistock Square.
O que existe num nome, perguntava o bardo? Muita coisa, muita coisa, respondo eu. Em cada um destes lugares, em cada uma destas palavras, existe a certeza de uma memória pessoal. Aliás, não apenas uma memória pessoal: uma memória de cultura e passado que se funde e confunde com o sangue de gente inocente.
A primeira explosão ocorreu em plena City, o centro do capitalismo e da exploração. Sim, selvagens, sim: mas também o local mais massacrado pelos bombardeamentos do blitz na Segunda Guerra. Relembro essas imagens de destruição radical --quarenta mil mortos, talvez mais-- e depois há uma imagem de paraíso que se introduz no quadro: o mercado vitoriano de Leadenhall, sobre as ruínas romanas, e que fica bem perto destes cenários de horror. Que saudades.
O mesmo para Russell Square. Ah, Russell Square: onde se ergue o mais imponente hotel da cidade, casa de Eliot e de Virginia Woolf. Aliás, não deixa de ser uma curiosidade sinistra que a figura de Virginia Woolf reapareça na quarta explosão, também em Bloomsbury. Que é como quem diz: a zona mais civilizada da cidade, onde fica o Museu Britânico que faz as delícias dos turistas eternos e onde vagueiam, dia e noite, os fantasmas de uma geração.
Culpas? George W. Bush marchou para o Iraque e o terrorismo tomou conta do mundo, dizem os sábios. Estranhos sábios. Eu julgava que o terrorismo atual começara no 11 de setembro, muito antes do Afeganistão e do Iraque. Ou, para sermos mais exatos, eu julgava que o terrorismo moderno começara no Irã, corria 1979. E depois se multiplicou pelas décadas de 1980 e 1990. Lembrar Beirute. Lembrar os primeiros atentados ao World Trade Center, em 1993. Lembrar os atentados a embaixadas americanas em África. Lembrar o navio "USS Cole", em 2000. E lembrar todos os atentados posteriores ao 11 de setembro, em solo islâmico, hindu, judeu ou cristão, contra muçulmanos, hindus, judeus ou cristãos. Contra tudo o que mexe, tudo o que vive. Estarei errado?
Talvez, talvez. Mas não estou errado quando vejo, numa das imagens televisivas, um cavalheiro londrino, com o rosto coberto de sangue, chorando com dignidade e, pormenor sublime, ajeitando a gravata em gesto banal.
É por isso que Londres vai continuar. Porque 50 segundos de horror nada valem contra séculos de civilização.
João Pereira Coutinho, 29, é colunista do jornal português "Expresso". Ele escreve quinzenalmente para a Folha Online.
E um obrigada especial à minha bestest friend, que me telefonou na quinta e nao deixou que eu soubesse da notícia pela TV.
posted by
Viviane at 7:30:00 AM
|